20120206

a dor não cantada

quão tamanha é a dor não cantada. e imensos os mitos não escritos. porque o ser humano é habitado por dores sem eco, por heróis não aclamados aos quais o único prémio é a sua dor não imortalizada.

porque há dores maiores que aquelas cantadas por Homero, que se sustém a si mesmas, sem o sentido épico das forças do destino. sozinhas, habitam os heróis não cantados com a majestade do silêncio. ninguém dirá dos que sofrem assim «vede, eles serão senhores...» - o herói anónimo permanece abandonado pelos poetas, com a crueldade da mortalidade que não será imortalizada.

não será feita cinematografia, nem dramaturgos darão cor à dor não conhecida. e sem a benção dos bardos quantos não saberão escrever, cantar, imortalizar o seu abismo, o quanto sacrificaram e o quanto amam. sem saber ilustrar o quanto fizeram, o quanto quiseram, serão esquecidos pela força do tempo. esses heróis são os que mais sofrem, a sua dor é a dor do mundo, o que sabemos do humano e será atribuída à mitologia sem rosto, ao tipo, aos filósofos.

quão tamanha é a dor não cantada. tê-la e à impotência de a exprimir. a insuficiência de ser. o herói anónimo, sem ser cantado, dirá «não sou nada». nem à vingança de Virgílio lhe é dado o direito, nem será acusado como David pelo pecado com Betsabé.

restará apenas a justeza ou maldade no próprio âmago, com a voz única do autor incapaz como penitência. e com a dor do silêncio, sem epopeias que sejam amadas, louvadas, estudadas e estimadas. a sua dor não será aliviada pela apropriação de outros que sofram dela façam. o peso será sempre só seu para suportar.

e carregam o mundo sem serem chamados Atlas, sem a honra do seu caos ser designado, vergados pelo peso da vergonha anónima.