20080913

os milagres de Jesus [seguindo Juan José Bartolomé]

quando lemos os evangelhos não vemos nos acontecimentos descritos qualquer forma de cepticismo perante os milagres realizados por Jesus, como refere o autor “não se suspeitava sequer da existência de uma lei natural que governasse a realidade”, apenas dúvidas sobre a sua natureza, se é divina ou maligna, e indignação por violarem determinados padrões sociais e culturais da sociedade em que se deram esses milagres, por exemplo, quando Jesus cura ao sábado ou quando perdoa pessoas que, segundo a tradição hebraica, estariam excluídas duma escatologia messiânica. à distância de dois mil anos existem hoje paradigmas que não existiam no tempo de Jesus, com a emancipação científica mudou a perspectiva sobre os evangelhos, claro que nada mudou numa perspectiva teológica, os evangelhos são testemunhos de fé, mas o racionalismo que surge numa era moderna coloca novas questões na leitura dos escritos evangélicos.

por um lado esse desenvolvimento científico até tornou mais fácil encontrar vestígios do Jesus histórico, mas paradoxalmente torna-se mais difícil aceitá-lo como um taumaturgo, mágico ou manipulador das leis naturais. assim surgiram consequentemente apreciações críticas que começaram a pôr em causa os milagres ou pelo menos a sugerir novas formas de interpretação na sua leitura.

o autor divide essas novas indagações em quatro momentos ao longo do desenvolvimento da investigação sobre Jesus:

1778-1906 – é já nos primeiros momentos que anteciparam a grande Revolução Industrial, com o rápido desenvolvimento do racionalismo, que surge a teoria de Reimarus, questionando a figura de Jesus, para este autor, Jesus teria sido um messias político, cujas intenções fracassaram, sendo o Jesus que está descrito nos evangelhos uma criação dos seus discípulos após a sua morte. a ressurreição era uma fraude que não podia ser provada historicamente, explicada por um suposto roubo do corpo de Jesus do seu túmulo de forma a projectar todo o anúncio apostólico. consequentemente também os milagres seriam meramente ilustrativos e em nada ajudavam a descobrir quais as intenções de Jesus ou a reconstruir a sua pessoa. autores como Lessing defendiam que não havia como provar o milagre, porque milagres ou profecias não seriam admissíveis historicamente, assim o facto de estar narrado não era sinónimo de ter acontecido realmente. seriam somente didácticos à luz da fé, leitura feita por uma vertente mais romancista que pretendia apelar a uma preservação das experiências humanas contidas nos símbolos ou na metáfora literária, defendendo que o objectivo dos evangelistas não era distorcer a verdade ou enganar alguém, apenas ilustrar a realidade transcendente de Jesus Cristo. neste longo período de furiosa investigação histórica, todo o tipo de teorias surgiam, para tentar compreender os milagres, a sua veracidade. vários teólogos racionalistas fizeram tentativas de explicar ou desmontar os milagres de um modo lógico sem negar o testemunho evangélico, tentando criar explicações construídas racionalmente, defendendo, como diz Juan José Bartolomé, que nada poderia dar-se na realidade que não pudesse ser explicado pela razão. o autor mostra-nos teorias, que foram defendidas, verdadeiramente extravagantes, por exemplo, Bahrdt (1741-1792) dizia que a multiplicação dos pães havia sido fruto de previsão calculada, que Jesus, antes de falar à multidão, teria escondido quantidades suficientes de pão para a alimentar. Holtzmann por seu lado defendia um Jesus liberal, apenas com uma dimensão moral e social que desenvolvendo a sua consciência e o seu espírito nobre interpretou o Reino de Deus como um sucesso interior, uma busca de desenvolvimento pessoal, não tendo conseguido nesse processo evitar o choque com as autoridades judaicas, o que o conduziu à crucificação. o anúncio da ressurreição e a construção da igreja em torno disso, seria algo que Jesus não planeara; os milagres seriam somente composição literária com base em modelos do Antigo Testamento, para ilustrar o carácter libertador de Jesus Cristo.

1906-1953 – Bartolomé designa este período por cepticismo histórico, no qual não se aceita que possa haver milagres, a não ser que possam ser explicados naturalmente. se para autores como Schweitzer, Jesus havia falhado redondamente nos seus intentos, aproveitando todo o cenário político e religioso, centrou a sua actividade no anúncio do Reino de Deus, que acabou por não ver concretizado; para Bultmann Jesus é um mestre de sabedoria, um verdadeiro rabi que jamais se imiscuíra em actos políticos e a sua morte teria sido um mero acaso, teoria que reforçava através da aparente perplexidade e desespero de Jesus na cruz quando clamava por Deus, ainda assim Bultmann vislumbrava nesse acto um enorme sentido de fé, pois confrontado com essa noite de sentido reconhecia nela a confiança na vontade de Deus. Bultmann não atribuía importância à tradição evangélica, nem qualquer mérito histórico, apenas importava que através de Jesus, Deus se havia manifestado a favor do Homem. Não é pelos milagres que se chega a Jesus, Jesus é o verdadeiro milagre, o grande exemplo de relação com Deus. este período atribui, assim, pouca importância aos milagres, que serviam apenas para demonstrar literariamente o carácter messiânico de Jesus, no qual a comunidade cristã acreditava e representava assim num plano mitológico passado, presente e futuro, o Jesus que curava os doentes e afastava os demónios interiores, o salvador cuja segunda vinda era esperada ansiosamente. a relativização da tradição evangélica aumentou quando surgiu a teoria da “história das formas” que afirmava que o evangelho de Marcos, o mais antigo, era um produto de fé comunitária, um esforço de construção dum texto de estrutura biográfica com base em variadas fontes, duvidando dessa forma da veracidade histórica do texto de Marcos que mostrava já um Jesus cristão, algo que não fora intenção de Jesus.

1953-1985 – o radicalismo anti-histórico de Bultmann para com os textos evangélicos incomodou de alguma forma os seus discípulos, que entendiam a historicidade como cultura e tradição também; a interpretação como agente constructor da história. o Jesus taumaturgo e exorcista não pode ser simplesmente encarado como objecto de investigação sobre a sua factualidade ou não-factualidade, senão estaria a reduzir-se a dimensão do texto e a importância, esse Jesus coloca-se ao serviço dos seus autores e da teologia de cada um deles (há diferenças no modo como são contados os milagres por cada um dos autores; Mateus insiste nas palavras de Jesus, nos grandes discursos e reduz a importância dos milagres, remetendo-os para dois capítulos essencialmente; Marcos mostra um Jesus primitivo e de certo modo rude, um curandeiro que usa lama e cuspo, um Jesus mais activo que discursivo; Lucas conjuga estas duas realidades, tornando-se assim histórico editorialmente, como diz a teoria “da história da redacção”, tornando-se verdade, porque foi através duma visão de fé verdadeira que foi contado.

curioso é o desenvolvimento da investigação judaica sobre Jesus, cujo intento é devolvê-lo à sua realidade cultural e educacional, e como parece ainda hoje, tal como no tempo neo-testamentário, continuar a aceitar mais pacificamente a questão dos milagres. a investigação judaica encara Jesus como um profeta escatológico, que tal como os outros profetas hebraicos teve um final trágico, e também um taumaturgo com uma invulgar capacidade de discurso popular. G. Vermes considera Jesus um homem santo e de grande intimidade com Deus, o que lhe daria uma capacidade perfeitamente natural para curar. Jesus como um benfeitor divino cujos milagres não provocam quaisquer problemas na comunidade hebraica, aliás, como já foi acima referido, mesmo os contemporâneos de Jesus não viam nos milagres qualquer estranheza nem foi essa a causa dos conflitos de Jesus com as autoridades, mas a revolução que Jesus trouxe à lei hebraica.

1985- (...) – a partir desta data dá-se, segundo o autor, uma supremacia da investigação norte-americana, fundamentada em estudos arqueológicos, sociais e históricos, de modo a tentar iluminar Jesus a partir dum conhecimento profundo do seu mundo e do seu meio-ambiente. até através duma revitalização da literatura apócrifa do Mar Morto. esbate-se o critério de investigação no qual se procurava o que Jesus tinha de diferente e busca-se antes aquilo que Jesus tinha de plausível, o que tem plausibilidade histórica. se lermos os relatos dos milagres, apesar de todas as dúvidas que levantam, repara-se que são das partes mais detalhadas no Novo Testamento, indicam-nos o nome dos intervenientes por vezes, como se passou, onde se passou, quem assistiu, etc. dum ponto de vista de exegese histórica, são dos relatos mais completos, paradoxalmente criam tantos problemas na sua interpretação. não era algo extraordinário que Jesus curasse, outros também o faziam, Jesus usa os milagres como sinais para reforçar o anúncio do Reino de Deus e inúmeras vezes nem é Jesus que cura, mas como ele mesmo refere nos relatos, é a força da fé de quem está doente e confia nele. os milagres operados sobre os mortos e sobre a natureza dificilmente provém do Jesus histórico, aconteciam numa esfera privada entre Jesus e os seus discípulos.

Jesus não é essencialmente historicidade, é nos evangelhos que temos a mais conseguida visão de Jesus Cristo, a interpretação cristológica de Jesus é fidelidade, não é invenção. é um acto de fé e não conhecimento.

20080904

alter ego


[sic ego defero]