20060316

paralelismos

na busca de semelhanças entre Siddartha Gautama e Jesus, surge logo a semelhança do inicío das suas pregações, ou melhor, do que antecede a pregação de ambos e que está directamente ligado à experiência de revelação de cada um dos mestres, e mesmo aos ensinamentos que praticariam – essa semelhança são as tentações que cada um sofreu.

as tentações surgem como uma purgação ou purificação do próprio ser, após resistir a Mara, uma divindade enganadora e trapaçeira, Gautama como que se sente iluminado (daí o título que lhe é conferido), pois liberta-se da condição mortal quase trágica de subserviência ao mundo terreno. o mesmo se passa com Jesus, embora tanto Lucas como Mateus (os dois evangelistas do cânone bíblico que nos descrevem as tentações no deserto) nos revelem que Jesus tem já consciência da sua natureza, que é tentado por Satanás, que tal como Mara é um trapaçeiro, uma representação figurativa daquilo que nos impede a transcendência enquanto pessoa – mesmo a percepção do que cada uma das figuras (Mara ou Satanás), que no fundo são a mesma coisa, por parte de Gautama ou Jesus é já de si iluminação ou revelação, a tentação e a capacidade de nos libertar-mos dela está em cada um de nós, e não numa personificação do Mal; afinal é também uma tentação o comodismo de atribuir a causa do Mal a uma entidade maquiavélica, exterior à pessoa, que se esforça constantemente para afastar os homens da transcendência.

as tentações a que Gautama resiste, tal como Jesus, não são outra coisa senão essas restrições de transcendência pessoal, senão repara-se: o egoísmo, a dúvida, a soberba, a falsa piedade ou mesmo o desejo de ultrapassar Deus. ambos os relatos apelam a uma revolta quanto ao estado da humanidade, tal como refere Ninian Smart: “O Budismo e o Cristianismo Bíblico concordam na visão da condição humana actual. Ambos se apercebem que a pessoa humana não se encontra numa relação justa com o mundo e com tudo o que nele existe. Para ser mais exacto: vêem que a pessoa transporta nela mesma uma tendência misteriosa para falsificar essa relação e para dissipar grande quantidade de energia a tentar justuficar a visão falseada que tem do mundo e do seu lugar nele”.

cada um, no seu contexto social e cultural, compreendeu que a exaltação de Deus ou de divindades não passava pelo rebaixamento do Homem, mas precisamente pelo contrário, em vez de submissão, revolta, não contra Deus, mas contra a própria tendência natural de cada indivíduo em centrar-se em si mesmo. ao egoísmo, que apela ao Iluminado para que se deixe permanecer no Nirvana, que fique com esse estado apenas para si em vez de se sujeitar ao trabalho exaustivo da pregação dessa mesma iluminação, Gautama responde que vá enganar os que se amam a si próprios, e Jesus recusa também um estado de satisfação indivual quando é tentado a prostar-se a Satanás, a própria mentira ou engano, pois aceitando tal situação, a sua própria natureza seria contradita.

também há um paralelismo nas tentações na tentativa de causar dúvida. Gautama ou Jesus poderiam ser apenas acidentes? como poderiam ter tanta certeza de si, isso poderia indiciar egocentrismo. a experiência de revelação a que cada um é sujeito não surge do contacto com um mundo terreno, mas precisamente da ultrapassagem que é feita deste – cada um deles é de facto iluminado, mesmo usando a alegoria platónica, cada um deles torna-se o sujeito que quebrou a corrente que prendia às sombras ilusórias e uma vez quebradas e vista a luz autêntica, não há como duvidar pois duvidar é ceder às próprias sombras, é ceder a um comodismo sedentário que trava o conhecimento de mim mesmo. duvidando, que duvide dos caminhos da busca para procurar o melhor, e nunca da busca em si.

após as três tentações enunciadas Siddartha Gautama sofre ainda tentações de cariz sexual, às quais responde com a exigência máxima do budismo, o desapego de todas as coisas, mesmo daquilo que mais estimamos, a pessoa amada. numa procura de paralelismos com o cristianismo não parece difícil encontrá-los, pois o desapego que Buda descobre assemelha-se muito à própria itinerância defendida e praticada por Jesus e mesmo ao apelo que faz aos seus discípulos para que larguem tudo e o sigam: “Assim, pois, qualquer de vós que não renuncia tudo o que possui, não pode ser meu discípulo(Lc 14, 33).

sem dúvida que essa exigência última tem que ver com as três anteriores tentações que Gautama sofre, ou mesmo com as tentações que Satanás provoca no deserto a Jesus, pois é como um primeiro patamar, pois renunciar à própria glória ou engrandecimento é já uma mostra de desapego, duma exigência de felicidade diferente de todas ofertas terrenas, mesmo do amor ou relação interpessoal.

no cristianismo um desapego mundano é desejado apenas para servir com total disponibilidade Deus, Lucas ilustra-nos isso: “Nenhum servo pode servir a dois senhores, porque ou odiará um, e amará o outro, ou se afeiçoará a um e desprezará o outro (Lc16,13).

no budismo não existe a crença num Deus Criador. Gautama, devido ao sofrimento que via nos seres vivos, não acreditava que pudesse haver um Deus Criador que amasse a sua criação, pois amando-a não a criaria para uma condição num estado de fractura, de dor.

aqui é exposta uma das diferenças entre ambas as expressões religiosas, pois no cristianismo é ao encontro de Deus que se caminha; o sofrimento não é causado por Deus, mas por uma sequência comportamental humana que usufrui de livre arbitrío, que conduz aos desiquílibrios sociais provocadores de injustiça. se um Deus Criador impedisse, como Gautama eventualmente desejaria, qualquer modo de ser, restringiria a transcendência humana na sua liberdade e alteridade. ao homem cabe descobrir que é total possibilidade de bem absoluto ou de ausência desse bem, e descobrindo-o agir livremente em função desse bem absoluto, é assim que se atinge o Paraíso (num sentido estritamente espiritual do termo), que se chega a Deus.

ora para o budismo, não há encontro com Deus, apenas (por derivar da tradição hinduísta) da realização ou concretização do atman com a sua essência brahman, do encontro da verdadeira essência do eu consigo mesmo, com o absoluto.

mas haverá de facto alguma diferença com a transcendência cristã em direcção a Deus?

a pessoa pela avídia (ignorância ou desconhecimento) vive centrada apenas na concretização do seu ego, centrada em si mesma não compreende que o que a rodeia não se centralize na sua própria vontade, nos seus desejos. é, pois, pelo desapego que se combate o estado de avídia. esse desapego e afastamento de qualquer laço é uma exigência no caminho da Iluminação, pois as relações ou qualquer necessidade de interacção ou concretização objectiva são motivo de desejo, que é provocador de sofrimento (dukkha). Buda diz que todos os seres humanos têm vislumbres de iluminação. isso acontece nos momentos em que aquele insistente e auto-referente eu não interfere, quando a mente não se prende ao passado, não se preocupa com o futuro e envolve-se pacificamente com o momento presente. esses momentos surgem como relances fugazes, mas podem também ser voluntariamente induzidos pelo processo meditativo. aí está o fim do sofrimento, a iluminação, o Nirvana (que parece ser semelhante a esse Paraíso, local de encontro com Deus).

na sua Iluminação, a percepção de transcendência que isso representou, Buda descobriu uma experiência que não morre, uma alegria sublime em contraste com a contingência, a tristeza e a insatisfação da existência meramente empírica, limitativa do ser. ao libertar-se da avídia concretiza-se como ser, iniciando uma forma de estar no mundo nobremente, relacionando-se com o que o rodeia de uma forma desinteressada, sem procurar satisfazer qualquer necessidade egocêntrica, a não ser fazer o bem porque é simplesmente isso que cabe a um ser iluminado fazer; tal conceito é similar com o amor incondicional fraterno que Jesus pede como caminho de santidade.

após resistirem e vencerem as suas provações, Gautama e Jesus merecem os títulos que lhes são atribuídos, o Buda (verdadeiramente Iluminado) ou Cristo. pela sua descoberta fundaram novos paradigmas de humanidade, um apelo à transcendência intíma do homem de modo a conseguir verdadeira felicidade.

a grande novidade trazida por Buda, tal como Cristo, na sua época e contexto social, foi a ideia de que a vida espiritual, como capacidade de conhecimento de si mesmo, não tem nada a ver com as restrições de casta impostas pelos brâmanes (no caso de Jesus, com a estratificação social que excluía classes inferiores duma escatologia messiânica). nenhum homem é menos homem que outro, cabe a cada um concretizar-se plenamente.

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