nunca tinha entendido a Ilíada para lá do seu estoicismo e
assim os personagens sempre me haviam parecido unidimensionais – mas agora
percebo como a minha dor é a daqueles que lutam em Tróia, dominados pelas
forças trágicas do destino e a impulsividade de amar.
mesmo com o poder de Aquiles, o humano sucumbe diante da
descoberta de um olhar que o desarma e, refém da irascibilidade, piora o que
pretende corrigir afinal o seu amor é grande, mesmo por alguém que no início
via como subserviente ou que se lhe entregava despojada «São os Atreus, entre os mortais, os únicos que
amam suas mulheres? Acho que não. Qualquer sujeito sadio e decente ama a sua e
cuida dela, como em meu coração amei Briseis, embora a tenha conquistado pela
lança».
o nobre Heitor é o retrato da vitimizada bondade, não é o
eros que o prejudica sendo ele fiel e honrado com a sua esposa, mas é
tragicamente absorvido pela fúria de Aquiles, também movida pela perda de
Patróclo, quem tanto amava.
a quantas insuficiências nos expõe Homero diante dos
pilares das forças em colisão, temos a fúria sem poder de Aquiles que acaba por
derrubar os princípios virtuosos e o desejo de bem de Heitor, quão pequenos somos
diante de ambos e quão maior tornam a nossa humilhação.
essa é a contingência que torna o humano reflexo da
causa central da obra. a fraqueza de Páris, uma sombra do irmão, que desperdiça
o tempo e a juventude atrás da ilusão da beleza física apenas para diante do
amor de Helena descobrir-se incapaz de proceder correctamente, sem conseguir
olhar à ruína e ao mundo que arde em seu redor – quantos sofrerão e morrerão,
quanto mal surgirá – tal é o amor que destrói a racionalidade e torna dele
escrava a consciência e chama a si a desonra e o despojo da coragem.
a maldição e a dor de Tróia é, ainda assim, a beleza
avassaladora da própria vida, de que a imortalidade não reside nos feitos e
virtudes do indivíduo, mas na força com que ama.