20080624

primo principio

em João Duns Escoto começa uma mudança gnoseológica, há um abandono da tese agostiniana da iluminação divino-natural [que daria origem aos conceitos universais independentemente da experiência] estabelecendo a origem do pensamento universal na experiência, através dum processo de abstração, admitindo portanto o racionalismo mais moderado de Aristóteles. mas, ao mesmo tempo, contra Aristóteles [e, porque não, também contra o tomismo], estabeleceu Escoto a compreensibilidade directa da singularidade - a ciência não opera apenas com os universais, mas com o aqui e agora.

consequentemente, em razão da inteligibilidade do real singular, o ser pode também ser concebido como noção unívoca. para Aristóteles e Tomás de Aquino o ser é uma essência universal, que se realiza nas unidades por predicação analógica, e por isso acontece a seu modo em cada indivíduo. ao contrário, no escotismo, cada indivíduo é pleno ser - é unívoco em cada indivíduo [este ser unívoco é possuidor de distinções formais, entre as quais a estaidade (haecceitas), que lhe permitem estabelecer-se como indivíduo], e equívoco em relação aos demais seres individuais; o ser individual é o último patamar do ente, última actualidade a que pode chegar a substância que contém em si parte da substância metafísica.

sendo pela realidade sensível que se apreende algo da substância metafísica inteligível [ela mesma unidade – a unidade primeira como medida das coisas existentes], não se consegue mostrar imediatamente e de modo evidente a existência de Deus, pois o conhecimento racional ou demonstrativo sobre Deus é impossível, pois não pode ser conhecido em Si mesmo nem em concreto. não há conceitos de Deus, quando muito há perspectivas. como diz Manuel Barbosa da Costa Freitas «por um lado, Deus diverge totalmente das criaturas; por outro, só O podemos conhecer a partir das perfeições das criaturas. Para O distinguirmos das criaturas teremos que adicionar às perfeições com que estas se apresentam revestidas uma ou mais notas pelas quais as possamos referir adequada e exclusivamente a Deus. O próprio conceito de ser, porque inicialmente sinónimo de “fora do nada”, e, por isso, comum a todos os seres, não O caracteriza suficientemente. É necessário acrescentar-lhe as notas, por exemplo, Infinito, Imenso, Omnisciente, Eterno, Absoluto e outras semelhantes, para O distinguirmos das criaturas. No plano do ser, Deus é dado na sua máxima transcendência na medida em que, abandonando a univocação inerente ao ens metaphysicum, O situamos entre os seres actualmente existentes – ens praedicamentale – como Infinito.» (1)

é pelo conhecimento intuitivo [como um acto de fé] ou abstractivo que se consegue um vislumbre de Deus, embora seja também um conhecimento complexo. através desse conhecimento do imaterial na criação material chega-se à analogia da existência de um Ser Infinito, aqui há uma proximidade a vários conceitos e autores; as cinco vias do pensamento de S. Tomás de Aquino, o motor imóvel aristotélico ou até mesmo Sto. Anselmo e o argumento endonoético ou ontológico. «O Universo formado pelo conjunto dos seres infinitos, contingentes na sua existência e predeterminados nas suas operações, e pelos homens, contingentes na sua existência, mas livres no seu agir, é um Universo contingente, mutável, temporal. Tudo indica que foi produzido, não pelo nada absoluto nem por si mesmo, mas por um Ser absolutamente Primeiro, incausável por natureza e causa incondicional de tudo. Assim constituído, o Universo dos seres finitos induz ao reconhecimento da existência de Deus, entendido não como um ser impessoal, mas como o Ser Infinito, Inteligente e Livre, que encerra em Si mesmo a plenitude das perfeições com que generosamente dotou todas as criaturas.» (2)

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(1) Freitas, Manuel Barbosa da Costa, “O conhecimento filosófico de Deus segundo J. Duns Escoto”, in Didaskalia XII (1982) pp. 246

(2) idem, pp.296-297

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