20070612

de golgotha e do sl 22

não podemos penetrar no pensamento de Jesus, mas não se pode negar que, eventualmente, morrer fosse algo que não desejasse, mas parece algo exagerada a afirmação de Bulltman, quando, radicalmente, diz que Jesus terá morrido em desespero devido a uma morte sem sentido e inesperada para si, pois o autor defende que Jesus não teria em si uma consciência messiânica e ver-se-ia apenas como um mestre sem qualquer intenção em ter impacto político e, portanto, teria encarado o seu julgamento e execução como um mal-entendido e um fracasso da sua mensagem.

é pouco provável que Jesus não esperasse de alguma forma o fim que acabou por ter (até pelo contexto histórico-social hebreu), pois a própria forma do seu ministério, mesmo as suas palavras, revelam essa possibilidade - exemplo claro disso são os textos Mc 2, 18-22 (YHWH é o único que chama Israel de noiva - a hora de Jesus é a da alegria escatológica, a presença do noivo - sendo isso que inicia a contestação e conduzirá à cruz) e Mc 12, 1-12 que demonstra a plena consciência de Jesus daquilo que lhe podia acontecer (na parábola dos vinhateiros homicidas, o noivo é manchado de sangue, a vinha torna-se motivo de escândalo), numa perspectiva da Paixão.
pode argumentar-se obviamente que o texto evangélico foi escrito posteriormente a todos os factos, mas ainda assim o autor mostra uma certa consciência desperta de Jesus nas suas próprias acções, se tal carácter da sua personalidade não fosse por demasia evidente não lhe teria sido atribuída tal importância - na pregação, nas parábolas, enfim na sua vida, está demarcada a própria leitura que ele mesmo faz de tudo isso; na sua íntima pessoalidade, no mais fundo de si, Jesus descobre-se em oração como Filho de Deus e que essa filiação pressupõe a livre submissão à vontade do Pai, ao caminho que conduz a Golgotha, pois é quando se entrega totalmente ao Pai, assume a Sua vontade, que se torna plenamente Filho.
aliás, esse kerigma primitivo sempre foi o centro da fé dos discípulos e do próprio cristianismo - o aparente fracasso exterior na forma da cruz é fundamental, é assim que se inicia o cristianismo, Jesus podia ter negado o que havia dito e feito para se salvar, mas assim negar-se-ia a si mesmo e à verdade que sentia da sua intimidade profunda com o Pai; sem tal modelo jamais teria sido fundada a igreja ou se teria tornado Jesus no Cristo que ilumina toda a história, toda a humanidade, pois se recusando o cálice que lhe fora dado a beber se tivesse salvo, toda a sua vida teria, aí sim, sido sem sentido (tanto em si mesma, como para toda a humanidade).

é precisamente neste contexto que surge a narração da Paixão. não é muito viável procurar isolar um determinado momento nesse acontecimento (com uma suposta pretensão de maior historicidade), como forma de interpretação, para esse fracasso na morte de Jesus, como algumas correntes procuram fazer com a exclamação “Eli, eli, lema sabachthani”, pois a citação da primeira frase do Salmo 22 apenas demonstra um Jesus orante mesmo no final (aos judeus era comum saberem os salmos, o seu conteúdo, e dizer a primeira frase evocava o seu significado, da mesma forma que hoje qualquer um de nós evoca um poema).
até porque, repara-se, não faria grande sentido os autores evangélicos inventarem nos acontecimentos a exclamação “Elli, elli, lema sabachthani”, pois teria precisamente uma interpretação ambígua para quem não conhecesse o salmo e não descobrisse o sentido orante de Jesus que, ao evocar esse salmo, ilustra com toda a intensidade o sofrimento perante a morte e ao mesmo tempo uma plena confiança no poder de YHWH, mesmo sobre tal fatalidade.
todas as co-incidências com o Sl 22 condensam a interpretação fundamental da morte de Jesus, do seu carácter profético e messiânico, de que tudo estava anunciado desde o AT e que assim tinha de se realizar.